A Irmandade

A História

Hortas, olivais, searas e moinhos, assim era grande parte do antigo Bairro Alto de São Roque, que gradualmente foi vendo os seus campos ocupados por palacetes e casas de ricos mercadores. Fruto disso, surgiriam também inúmeras ermidas e capelas, ora públicas, ora privadas, conforme as posses e motivos dos seus fundadores. Se sobre alguns templos pouco se sabe das suas origens históricas, em relação à Capela de Nossa Senhora da Ajuda e dos Santos Fiéis de Deus, sabemos realmente quem foi o mentor da sua construção: Afonso Braz, que em 1551, pela sua grande devoção às Almas do Purgatório, a mandou erigir, vindo a falecer em 1569. Por testamento de 26 de Agosto do ano 1554 este instituiu nela uma "capela" (bens deixados para serem rezadas missas por alma) e determinou que a administração ficasse a cargo das suas sobrinhas, e depois destas a Misericórdia. Ora ainda no séc. XVI ocorreu uma grande controvérsia entre a Misericórdia e a Irmandade da Senhora da Ajuda. Bartholomeu Dias Ravasco, irmão mezário da Misericórdia, desejando tornar-se administrador da "capela", conseguiu o cargo com a permissão da Misericórdia. Esta por sua vez demitiu o seu antecessor (pessoa muito estimada e zelosa no seu cargo). Os Irmãos da Irmandade de Nossa Senhora da Ajuda não concordaram com esta nomeação e, insatisfeitos com tal acto, pegaram na imagem da Padroeira, levando-a para a primitiva igreja de Santa Catarina do Monte Sinai. Perante isto, os vizinhos do templo vendo-se sem essa devoção que lhes era tão querida, decidiram ir ao Convento do Carmo pedir uma antiga imagem que nele existia e que tinha também essa invocação. Só um documento (3) do séc. XIX relata este acontecimento e desconhece-se o desfecho de tudo isto. A verdade, é que a Irmandade da Misericórdia se manteve como administradora da referida "capela de Afonso Braz", até 26 de Agosto de 1707, data na qual passou a sua administração para a Irmandade de Nossa Senhora da Ajuda. 

Até entrega da administração da "capela", sempre a Mesa da Irmandade da Misericórdia assistiu na ermida, com círios na mão, à celebração do dia do Santíssimo Nome de Maria, data na qual se celebrava Nossa Senhora da Ajuda. 

Mas o que levou Afonso Braz a construir uma capela com esta invocação neste local? 

Informações concretas não existem, sobrando-nos apenas alguns manuscritos e tradições orais. Fala-se, frequentemente, na existência de um antigo cemitério neste local e, segundo era costume, ao passarem junto dele, os transeuntes lançavam pequenas pedras, dizendo que tal fosse pela alma de um Fiel de Deus. Terá sido depois com as muitas pedras aí deixadas, que se construíram os alicerces da capela, ficando como orago os Santos Fiéis de Deus, isto é, as Almas do Purgatório. 

Qual o significado desse costume de lançar pedras num cemitério? 

Como se sabe, essa prática é comum a vários povos e religiões, nomeadamente entre os judeus. Sendo apenas uma suposição, não seria de estranhar que este fosse um cemitério judaico. O grande cemitério da cidade ficava mais ou menos no local onde hoje se encontra o Elevador de Santa Justa. No cemitério, na entanto, em finais do Séc. XV as perseguições e discriminações antissemíticas começaram a adensar-se. 

Em 1492 com o começo das obras do Hospital Real de Todos os Santos, o Judaico seria destruído e as suas pedras e lápides utilizadas expulsão (ou conversão forçada), existe uma lacuna temporal de construção do novo edifício. Se 1497 foi a data limite para a seis anos na qual era imprescindível um espaço para os cemitério era enterramentos dos fiéis dessa comunidade. Nesse ano estavam retidos em Lisboa mais de 20.000 Judeus, logo um época tão algo imprescindível. E portanto possível que um cemitério neste local tivesse sido criado para sepultar judeus numa conturbada. Tendo em conta que a capela só foi construída em 1551, é bem provável que o cemitério estivesse já votado ao abandono, e que por esse motivo Afonso Braz tivesse escolhido este local, pela sua grande devoção às Almas do Purgatório. Até se pode colocar a hipótese do fundador da capela ser um "cristão novo", mas tudo isto são meras hipóteses e suposições, que com as lendas, vão adensando ainda mais o mistério. 

Alexandre Herculano, por sua vez, sugere que este cemitério foi utilizado para enterramento de supliciados e malfeitores, pois a eles não era permitido o solo sagrado das igrejas. Escreve Herculano que com o passar dos anos, a esses pequenos montes de pedras passou o povo a designar também por "Fiéis de Deus", o que prova que rapidamente o nome passaria também para o local. 

Seja como for, certo é que a capela foi de facto mandada construir em 1551 por Afonso Braz, pois isso o atesta a lápide colocada no seu interior, ao lado da porta principal. Apesar de pouco comum nos dias de hoje, este orago dos Santos Fiéis de Deus existiu e ainda existe em vários locais. Para além desta capela no Bairro Alto, existiu também uma capela na antiga Igreja do Convento do Carmo, de Lisboa, com a mesma invocação (nessa capela esteve o primeiro túmulo de Dona Iria Gonçalves, mãe do Condestável). Também em Sintra, na igreja de São Martinho, existia uma capela dos Fiéis de Deus, com a sua Confraria. Em Torres Novas existiu igualmente uma Ermida dos Fiéis de Deus, sob a qual viria a ser construído o Hospital da Santa Casa da Misericórdia. No Alentejo, perto de Nisa, existe ainda hoje uma pequena ermida com esta mesma invocação. Estas, entre muitas outras... 

Se no início o culto era, sobretudo, dedicado às Almas do Purgatório, rapidamente aumentou a devoção a uma imagem de Nossa Senhora, ficando assim unidas as duas devoções. 

Mas qual a explicação para a existência da invocação de Nossa Concilio de Senhora da Ajuda, neste local?

Seguramente que o Concílio de Trento teve as suas influências, pois a partir daí o Culto Mariano foi, altamente, reforçado, servindo não só de exemplo e catequese uma fórmula contra-reformista. No entanto, é possível também que a explicação para esse culto se encontre nas antigas estampas de Nossa Senhora da Ajuda Nas gravuras de 1728 podemos ver que do lado direito Virgem está representada a cena de um naufrágio, com uma nau já muito destruída e um homem aflito nas ondas do mar. Talvez esta seja a chave para esta devoção e criação do culto. 

É possível que a imagem da Senhora da Ajuda tenha sido doada por algum mareante, como forma de acção de graças, ao ser salvo de um desastre marítimo. No outro lado das gravuras vemos também uma representação das Almas do Purgatório, isto é, dos Fiéis de Deus, verdadeiro título deste Templo. A Irmandade seria criada muito rapidamente, pois em 1591 desejosos de obter graças espirituais (tão em voga nesse tempo), os Irmãos pediram Indulgências a Roma para a sua capela e membros. Ser-lhes-iam concedidas as mesmas Indulgências que foram dadas ao Hospital e Arquiconfraria do Espírito Santo da "cidade eterna". Lucrou também as que tinham sido dadas aos Altares Privilegiados de Roma, na seguinte forma: "E as mesmas graças se concedem às pessoas que mandarem dizer Missa no Altar de N. Senhora da Ajuda dos Fiéis de Deus, e tiram uma alma do fogo do Purgatório, cada vez que as mandarem dizer". Todas estas graças foram novamente confirmadas no ano de 1736. Facto conhecido também, é o da acção sócio-caritativa desempenhada neste local. 

Ficou célebre o ermitão que vivia nas dependências da Capela dos Fiéis de Deus, e que transformou o local em "albergue" para crianças que se perdiam de seus pais. Assim, quando em Lisboa alguma criança desaparecia, logo os progenitores a procuravam neste local. Como esmola, e em agradecimento, ofertavam-lhe um vintém (26). No Assento da Vereação datado de 21 de Maio de 1592 a capela ainda não figurava entre os locais indicados para acolher as crianças perdidas. Só no século XVII, através do Alvará Régio de 21 de Junho de 1628, é que a capela ficaria incluída no grupo dos locais que deveriam prestar assistência, protecção e segurança à infância desvalida da cidade de Lisboa.

 Em 1620 pretendeu-se criar junto da capela um Recolhimento da Ordem dos Trinitários, mas uma Carta Régia desse mesmo ano impediria tal construção sem dar motivo para tal. A verdade, é que anos mais tarde, aqui seria criado um Recolhimento para mulheres, mães, irmãs e filhas dos criados do Paço. É por isso possível que já houvesse intenção de criar a instituição, antes dos Trinitários terem pensado nisso, e que por esse motivo tal não foi permitido. Um Alvará de 2 de Outubro de 1624 consigna ao Recolhimento 100$000 réis por seis anos, e outro de 21 de Julho de 1644 volta a renová-lo por mais seis anos. Esta instituição manter-se-ia até 1671, e o edifício ainda hoje lá está, como prédio de habitação, no N.º 9 da Rua dos Caetanos. 

Nesse existência prédio, no Séc. XIX, Júlio Castilho pôde comprovar a de uma porta entaipada que no passado permitiria o acesso do Recolhimento para uma tribuna da capela. s que Ao analisarmos os antigos mapas da cidade, assim como os documentos existentes no Arquivo da Capela, percebemos c ela foi alvo de muitas obras e transformações ao longo dos seus quase 500 anos de história. Ao ser erguida foi construída como era tradição "Ad Orientem", isto é, Sacerdote e Fiéis voltados para Oriente. No entanto, hoje em dia ela está virada no sentido oposto, não se sabendo quando se deu essa mudança. 

Em 1690 Padre Gil Lourenço foi admitido na Irmandade que nessa altura contava apenas com dois membros. Foi, pois, graças às esmolas deste benemérito que importantes obras se efectuaram na capela, nomeadamente o aumento do arco da capela-mor.

A 29 de Março de 1705 a Irmandade celebrou um contrato com o mestre-entalhador Matias Rodrigues Carvalho para a feitura de um altar em talha dourada. Por essa altura as paredes foram revestidas com silhares de azulejos, e acima destes seriam colocados alguns painéis representando cenas da Vida da Virgem, atribuídos por Frei Jerónimo de Belém (21) ao conhecido pintor Bento Coelho da Silveira. 

Também nas Memórias Paroquiais, de 1758, o Prior das Mercês nos diz que a ermida era "toda de talha dourada e apainelada" (29). Sobre o que padecido este templo no grande terramoto, nada é referido, mas estando ele incluído no grupo das "Hermidas bem livradas" terá isso significa que pouco ou nada teria sofrido com o referido cataclismo. No entanto, ao entrarmos hoje nela, constatamos que pouco ou nada resta da beleza extraordinária narrada nesse passado longínquo. Não vemos nenhum altar em talha, nem nenhuma tela ou painel, nem nenhum conjunto azulejar... 

Que terá sucedido a tanto esplendor? Nada se sabe! 

Não há nenhum documento que explique o sucedido. Recentemente percebeu-se que os azulejos que forravam o rodapé de uma escada, nas dependências, poderiam ser reaproveitamentos dos que antigamente Tentando-se altar-mor. no reconstruir esse puzzle, foi possível formar duas pequenas cenas mais ou menos perfeitas: numa delas, aparecem representados um homem e um corvo, possivelmente, São Paulo Eremita; na outra, uma fonte que poderá estar relacionada com a Ladainha de Nossa Senhora. Foram estes conjuntos colocados junto da porta da entrada, mas continua a dúvida se fariam parte dos que forravam o altar-mor ou se teriam vindo de um outro edifício. se encontravam Se em 1758 este templo tinha somente o altar-mor, hoje, para além deste, existem mais sete. 

Em 1834, com a extinção das Ordens Religiosas e o fecho dos conventos e da maior parte das igrejas conventuais, as Irmandades que neles tinham as suas sedes viram-se forçadas a procurar novos espaços para as suas devoções. Por esse motivo esta pequena capela passou a albergar inúmeras Irmandades e Confrarias, sendo essa a explicação para tão rico e diversificado património escultórico. 

A 16 de Julho de 1868, na Sessão da Junta Grande, todos concordaram com a urgência de efectuar obras no edifício por causa de "um furacão que há anos se dera em Lisboa". Em 27 de Agosto desse mesmo ano, El Rei D. Luís autorizou a Irmandade a contrair um empréstimo de 600 mil réis para as obras de "reedificação da sua igreja". A palavra reedificação levanta aqui algumas dúvidas. Tratar-se-ia de reedificar uma nova igreja, ou simplesmente recuperar a existente? Os documentos das obras não são claros, mas tudo parece apontar para obras de conservação e restauro. Foi ainda em Novembro desse ano que se compraram "dois acrescentos de pedra para a porta da Igreja", o que faz pressupor que até aí se entraria através de alguns degraus colocados no exterior, pois o primitivo adro fora mandado retirar pela Câmara em 1837, alegando-se o transtorno que o mesmo causava numa rua tão estreita. 

Como se disse anteriormente, se no início a capela estava virada a Oriente não se sabe quando se alterou o edifício para Poente, tal como hoje se vê. 

in Capelas e Ermidas da Cidade de Lisboa, de Alexandre Roque

Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora